Frederico do Espírito Santo Araújo
Para que não continue parecendo estranho falar em provisoriedade da liberdade, vale lembrar que temos duas espécies de prisão: aquela que implica cumprimento de pena imposta pelo Código Penal através de uma sentença condenatória transitada em julgado; e aqueloutra prisão provisória, autorizada pelas Leis Processuais, enquanto se aguarda o deslinde da instrução criminal. É da provisoriedade, senão mesmo excepcionalidade, destas prisões cautelares processuais, que se extrai o conceito de liberdade provisória que deve vigorar até que se obtenha o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória. Em verdade, nem deveria falar-se em liberdade provisória, pois liberdade é o estado normal das pessoas até que surja uma sentença penal condenatória transitada em julgado. Pode-se falar, isso sim, em prisão provisória, pois as leis permitem alguns tipos de prisões processuais cautelares, mas somente quando elas forem rigorosamente necessárias para acautelar o processo penal, não podendo transmudar-se em antecipação sistemática de uma pena que ainda não se sabe se transitará em julgado ou não.Assim é que temos: A prisão temporária de 5 ou 30 dias (dependendo da gravidade do crime) quando imprescindível para a investigação criminal, mas somente quando, concomitantemente, o investigado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários à sua identificação e tiver cometido algum crime hediondo; A prisão em flagrante (que só se mantém se estiverem presentes os requisitos da prisão preventiva) e só pode ocorrer se o sujeito está cometendo a infração penal ou acaba de cometê-la (flagrante próprio), ou é interrompido e/ou perseguido logo após concluir a infração (flagrante impróprio), ou quando, logo depois do crime, é encontrado portando instrumentos, armas, objetos ou papéis que demonstrem ser ele o autor da infração (flagrante presumido); A prisão preventiva (que por exigir prova da existência do crime e indicio suficiente de autoria não é cabível na fase do inquérito, pois se o Ministério Público não tem elementos para oferecer a denúncia o Juiz também não os tem para decretar prisão preventiva) a qual só pode ser decretada como garantia da ordem pública ou ordem econômica (cuja ameaça, aliás, não passa de mero exercício de adivinhação), por conveniência da instrução processual (ameaças a testemunhas, vítimas, autoridades, ou fugas deliberadas para não ser reconhecido), ou para assegurar a aplicação da lei penal quando demonstrada nitidamente a intenção de frustrar o respeito ao ordenamento jurídico (fuga do país); A prisão decorrente de pronúncia ou de sentença condenatória recorrível (quando se nega ao réu o direito de recorrer em liberdade) sendo exigíveis, também nestas hipóteses, os requisitos da prisão preventiva. E finalmente a condução coercitiva (espécie de prisão cautelar processual) tanto do réu, vítima, testemunha ou outra pessoa que se recuse injustificadamente a comparecer em juízo. À exceção do flagrante, todas as demais espécies de prisão dependem de ordem escrita do Juiz de Direito. Mas até mesmo a prisão em flagrante só será mantida se o juiz não a relaxar tão logo receba a comunicação que não pode demorar mais de 24 horas.
Todavia, impõe-se chamar a atenção para o fato de que a prisão, no Brasil, é a exceção e a liberdade, enquanto o processo não chega ao fim, é que é a regra. Para não deixar dúvida, diz o Art. 5º – LXVI da C. F. que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança”, e a mesma Constituição diz no mesmo Art. 5º-LXV que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”, valendo observar que até mesmo a prisão decretada por magistrado fica sob o crivo dos tribunais através do “habeas corpus”, sendo certo que constitui abuso de autoridade efetuar prisão ilegal ou deixar de relaxar prisão ilegalmente realizada.
O abuso mais freqüente que se verifica na prática forense é exatamente o de deixar o juiz de relaxar prisões ditas em flagrante, mas ilegalmente realizadas. O projeto do novo CPP que tramita no Congresso Nacional obrigará o juiz a dizer se manterá a prisão em flagrante e não o dizendo presumir-se-á que não a confirma, colocando-se o preso em liberdade. Atualmente, porém, ocorre o contrário. Se o juiz nada disser, presume-se que não vislumbrou qualquer ilegalidade e que mantém a prisão em flagrante. Na prática, contudo, a maioria dos juízes nem lê o flagrante, limitando-se a esperar que alguém o provoque com um pedido de relaxamento ou de liberdade provisória. E se o lê limita-se a uma análise superficial da legalidade, ou seja, se houve, de fato, flagrante próprio, flagrante impróprio, ou flagrante presumido e na maior parte das vezes “engole” como flagrante presumido prisões realizadas muito depois sem que o réu seja encontrado de posse de qualquer instrumento que permita deduzir ser ele o autor do crime, mas preso assim mesmo só porque algum policial suspeitou ou “cismou com a cara do freguês” e passa a inventar situações de flagrante inexistentes só para não ser processado por abuso de autoridade. Ocorre que até essas rápidas leituras superficiais, não apreciam se, apesar da eventual legalidade do flagrante, estão ou não presentes os requisitos da prisão preventiva, sem os quais o preso deverá ser colocado imediatamente em liberdade provisória. Diz o Parágrafo único do Art; 310 do CPP que o juiz poderá (deverá) conceder ao réu liberdade provisória quando verificar a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva. Ou seja, quase todas prisões processuais exigem uma coisa só: os requisitos da prisão preventiva.
Ora, já vimos que prisão preventiva só pode ocorrer quando a soltura do sujeito implicar em ameaça à ordem pública ou econômica, por conveniência da instrução processual, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indicio suficiente de autoria. Assim, ainda que o investigado tenha sido preso em flagrante legal, para mantê-lo em prisão provisória é preciso que a soltura dele ameace a ordem pública (um sujeito que mata por ciúme dificilmente matará alguém além da mulher amada, devendo ser solto apesar do clamor feminista). É preciso ver se sua soltura ameaça a instrução processual (se é pessoa conhecida com raízes familiares sólidas na comarca e ainda não ameaçou nenhuma testemunha nem escondeu nenhuma prova, não há razão para mantê-lo preso). É necessário apreciar se sua soltura ameaça a aplicação da lei penal (se o sujeito é tão “caipira” que não tem mobilidade nem para ir à capital de seu Estado, não há porque temer que possa evadir-se do país pondo em risco a aplicação da lei). Mas também é preciso analisar se há prova da existência do crime (se o sujeito foi preso porque pareceu ao guarda que estava dirigindo embriagado, mas não há prova de concentração de álcool por litro de sangue exigida na lei, impõe-se a liberdade provisória). E finalmente impõe-se verificar se há indícios suficientes de que seja o preso em flagrante o autor do crime, valendo lembrar que diante de um único indicio isolado não confirmado por alguma outra circunstância, é melhor que o réu aguarde o julgamento em liberdade provisória.
Enfim, como já dito, as prisões provisórias, processuais, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, são a exceção, não a regra; elas só devem ser mantidas se forem rigorosamente necessárias para acautelar o processo penal, não podendo transmudar-se em antecipação sistemática de uma pena que ainda não se sabe se transitará em julgado ou não. Na dúvida, opta-se pela liberdade e não pela prisão provisória.
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